Cats: de T.S. Eliot a Andrew Lloyd Webber
On 23/02/2023 by Fernando Miguel SantosDezenas de pessoas se amontoavam à porta do jardim do antigo Palácio de Cristal, já Pavilhão Rosa, agora Super Bock Arena. Uma dualidade para mim que, como escrevi num dos meus livros, adoro pessoas e detesto pessoas. Há, porém, algo de profundamente consolador quando tanta gente se senta no mesmo espaço, em silêncio para apreciar uma peça de teatro. Neste caso, adoro-os. Quando pegam nos telemóveis para ver uma mensagem já posso detestá-los um pouco. Digamos que tomo a parte pelo todo, caso não os conheça, numa sinédoque que me causa mais comichão do que consolo.
Torna-se ainda mais adequada toda a alegoria de Cats. Tira-se a aparência humana, elenca-se os gatos de vários feitios, para no fim se concluir que, afinal, com excepção daquele orgulho felino que só alguns humanos apresentarão, não somos assim tão diferentes. Nisso, T.S.Elliot tinha toda a razão quando escreveu o livro (Old Possum’s Book of Practical Cats) que inspirou Andrew Lloyd Webber para este musical.
A beleza do espaço interartes é demonstrado por este caso de excelência. Um livro que viaja até ao teatro onde é objecto de transformação; nasce outra obra que vem acrescentar património cultural e capital afectivo ao livro, elevando-o; nasce uma terceira vida, que existe no que não é palpável, mas que se consubstancia na relação que há entre as duas obras e no triângulo do qual o espectador-leitor participa.
O mais surpreendente, aos meus olhos, é a simplicidade da história. As narrativas simples que em si contêm algo que vá além dos lugares-comuns são as mais difíceis. São as que têm camadas, níveis interpretativos, projecções psicológicas, silêncios que se podem ler e escutar. No caso do ouvir, ninguém esquece Memory. Os arrepios que se sentem ao ouvir a amplitude vocal que canta um pedido de nova vida ficam marcados na pele. Mas há mais: o público deixa-se seduzir por Rum Tum Tugger, o garanhão insatisfeito, viaja com o gato do comboio Skimbleshanks, admira o Old Deuterenomy tanto quanto teme Macavity, reconhece algum rico na vida de Bustopher Jones, vê o declínio do artista no gato do teatro Gus e maravilha-se com a magia de Mr. Mistoffelees. Mungojerrie e Rumpelteazer não roubam nada da plateia, a não ser os corações. Esses ficam entregues aos destinos dos gatos que somos nós.
A inspiração de nomes como Deuteronomy ou Mistoffelees, cujas vidas são representativas de alguns traços que podemos encontrar na sua origem bíblica, dão um toque de familiaridade, um sentimento de proximidade ao mito universal, primeiro, e à tradição judaico-cristã, depois, tornando Cats ainda mais representativo da sociedade ocidental.
Acabando a peça, fica-se com a sensação de que a história não podia ser contada de outra forma, tal é a importância da música no desenrolar da narrativa, na apresentação dos gatos, nos movimentos felinos dos actores e, mais do que tudo, na emoção. É aqui que podemos voltar à ideia da simplicidade, difícil de criar mas fácil de transpor para dentro e de decalcar nas nossas vidas.
A relação da palavra com a música, bem como os recursos poéticos e rimáticos, que somam nomes inventados a sentimentos sobejamente sentidos, levam-nos numa viagem única de compaixão, de aceitação do Bem e do Mal e de integração da magia que é sentir quando tantos outros, na mesma sala, também sentem.
Por fim, por resistir na nossa memória através de Memory, o que por si só seria já um belo jogo simbólico, Grizzabela torna-se uma personagem premonitória até para a própria peça: a cada ano que passe haverá novos espectadores e, daí, uma nova vida para todos os gatos.
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