
Guerra na Ucrânia
On 26/02/2022 by Fernando Miguel SantosEscrevo por ter um amor desmesurado pelas palavras. São a minha mais natural manifestação artística e, creio, uma das minhas maiores armas.
Com a invasão russa da Ucrânia, escrevo para organizar o pensamento.
Não pensei que a minha geração pudesse assistir a duas guerras. Primeiro, a guerra sanitária. Agora, um conflito bélico que põe em causa as fronteiras que a Europa conhece há décadas.
Sempre fui sensível, mas a forma como me senti afectado pela pandemia conferiu-me uma outra, e mais aguda, susceptibilidade ao sofrimento. Além disso, as minhas reacções à desfaçatez com que por vezes se defende o impensável tornaram-se mais viscerais.
Sobre o despotismo
Várias hipóteses geopolíticas são avançadas como causa desta guerra. Razões de natureza militar, económica, de posicionamento estratégico. E fala-se de legado.
Que tipo de mente pérfida pode imaginar que será este o caminho para um legado histórico?
De resto, o que mais me choca é a naturalidade com que Putin desenrola as suas ameaças, atirando palavras de agressividade extrema como se se tratassem de uma conversa de café. É um déspota que não merece os nobres povo e cultura que lidera, que hoje o desafiam e que ele encarcera apenas por dele discordarem.
Sobre o PCP
As declarações do Partido Comunista Português no seu site oficial são muito mais do que um erro político que, espero, dificilmente será esquecido. Posiciono-me politicamente no centro-esquerda e já escrevi contra a extrema-esquerda (como no artigo sobre os festejos do 1º de Maio durante a pandemia) e contra a extrema-direita (como no meu livro “Memórias que uma Vacina não Apaga”).
Acredito que, ideologicamente, e como membro de oposição, o PCP tem um papel importante na nossa democracia. Hoje, envergonha-me saber que este partido se esconde atrás da sua ideologia para apontar os EUA como responsáveis por este conflito. A citação do imperialismo americano, quando se vê Putin invadir um país e desdenhar duma identidade própria e livre como se fosse parte integrande de um império que já não existe, tem mais de ridículo do que argumentativo. Não, os EUA não estão isentos de culpa em muitos cenários de guerra. Porém, deixar de lado uma condenação veemente das decisões de Putin é lamentável e preocupante. Um partido que tem assento parlamentar, que foi determinante na nossa democracia, não pode ter uma posição leviana sobre uma guerra, mesmo que ela seja perpretada por alguém que lhes é próximo (ainda que relembrem que a Rússia é um estado capitalista, como forma de se demarcar dessa proximidade). Tenho vergonha.



Sobre a impunidade
Pelas palavras dos líderes europeus e americano achei que iriam além das sanções. Pensei que, assim que Putin desse ordem aos seus militares de invadirem a Ucrânia, a reacção seria mais veemente. Ninguém deseja uma guerra de escala global, mas com ditadores não há possibilidade de diálogo. Zelensky disse que a Ucrânia se defende sozinha e, apesar dos apoios enviados, isso não deixa de ser verdade.
Como durante a pandemia, voltei a lembrar-me do Paradoxo da Tolerância, enunciado por Karl Popper. Quando a tolerância é total, tolera os intolerantes. Estes, por sua vez, aproveitam-se dela para a aniquilar.
Os tolerantes não podem tolerar indefinidamente. Há um limite. O limite é o do impedimento da instrumentalização da tolerância para fins pérfidos.
Sobre a História
Diz-se que a História se repete. O ser humano tem muita dificuldade em olhar para o passado e evitar os mesmos erros. Outros nomes históricos começaram com mais discrição e devastaram o Mundo com guerras atrozes.
Como sempre, o que mais importa são as pessoas. As vidas que já se perderam e as que ainda se perderão são os verdadeiros danos irremediáveis. Muitos dos sobreviventes ficarão marcados para a vida, como sempre aconteceu após estes conflitos. A diplomacia não foi suficiente para evitar a escalada de violência, como não o foi muitas outras vezes, talvez porque os interesses estejam de tal forma arraigados na actividade política que o serviço à população é esquecido como seu verdadeiro objectivo.
Sobre a empatia
Imaginem que somos nós que temos de abandonar as nossas casas, porque mísseis chovem lá fora. Imaginem que são os nossos filhos a partir dos 18 anos e os nossos pais até aos 60 que ficam proibídos de sair do país, por força duma lei marcial, para defenderem a nossa liberdade. Imaginem que somos nós que temos de pegar numa arma para defender a nossa rua. Poderia ser a sinopse de um filme, mas é a realidade que se vive no nosso continente. No nosso continente.
Comovem-me os russos que se colocam em risco para se manifestaram contra a guerra, os russos que se envergonham do seu país e do seu presidente. Comovem-me as faces de dor e as palavras de desespero, mais pungentes do que as palavras violentas do agressor.
Irritam-me a inércia, as palavras vãs e o aproveitamento da fragilidade de terceiros.
Sobre Volodymyr Zelensky
A opinião de alguns comentadores, como a que a internet partilha de Ricardo Costa, apontam o curriculum de Zelensky como uma fraqueza na gestão da Ucrânia. Esquecem-se, talvez, que é assim que a democracia funciona: as pessoas elegem aqueles por quem querem ser representadas.
Uma grande parte dos cidadãos comuns afasta-se da política, devido aos seus meandros mais pútridos. Não se pode, como se vê, fugir da política. Ela bate-nos à porta todos os dias. A ideia de que o serviço político está reservado a uma elite gera alienação pública, abstenção, desinteresse e, no extremo, espaço para corruptos ou ditadores interesseiros.
Ser actor, comediante ou um político inexperiente não pode ser considerado uma das causas para um dos maiores atentados das últimas décadas ao mundo democrático. Zelensky foi eleito e está a ser atacado por um tirano de ambições czaristas. Putin estava, é certo, incomparavelmente mais preparado para a política e para um conflito que parece ter desenhado durante anos. Já conseguiu derrubar vários dos seus alvos, mas ainda não conseguiu destruir a imagem de Zelensky. O ucraniano é agora um símbolo de resistência. Não abandonou o seu país apesar de se considerar o alvo número um de Putin. À notícia da preparação da sua retirada respondeu: “não preciso de boleia, preciso de munições.”
Putin, um político exímio, mas um déspota; Zelensky, um comediante eleito presidente, apesar da sua inexperiência política.
Adaptando à política as palavras de Manuel António Pina sobre os poetas, do que estamos precisados não é de bons políticos, é de boas pessoas.
Sobre o humor
Multiplicam-se na internet os memes sobre a guerra, alguns deles usados por meios de comunicação oficiais da Ucrânia. Também aqui se encontra um paralelismo com a pandemia.
O humor é uma forma de resistência. Escolhi o humor como forma de coping para situações de stress como tema do meu memoire de especialidade em Cuidados Intensivos por essa razão. O humor faz-nos resistir, é um escape às situações mais duras que enfrentamos. Isso passa-se com o burnout profissional, a perda, o luto e, como se vê, com a guerra.



Sobre o heroísmo
Com lágrimas a escorrerem pela face, uma ucraniana limpa os vidros rebentados da sua habitação enquanto entoa o seu hino nacional. Encontra, no amor à pátria e à resistência, a força para suportar o peso do quotidiano em guerra.
Na ilha Zmiinyi, 13 soldados ucranianos foram ameaçados por um navio de guerra russo:
– Fala o navio de guerra russo. Repito: entreguem as armas e rendam-se ou abriremos fogo. Entendido?
A conversa subsequente entre os soldados ucranianos é atroz. Sente-se o peso da morte nas suas palavras:
– É agora. Digo-lhes para se irem foder?
– É melhor.
Aumentando o volume para alcançar o navio russo, o soldado ucraniano emite aquela que provavelmente seria a sua derradeira mensagem de resistência, um último acto de heroísmo:
– Navio de guerra russo, vão-se foder!

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