
Verónica Castro & Helena Inverno
On 03/07/2012 by Fernando Miguel SantosCONVERSA COM AS REALIZADORAS DE “JESUS POR UM DIA”, DOCUMENTÁRIO PREMIADO COMO MELHOR LONGA-METRAGEM NACIONAL DO INDIE LISBOA ’12
FERNANDO MIGUEL SANTOS, 3 de Julho de 2012, na revista Rua de Baixo
Num lugar não muito distante um grupo de prisioneiros sai à rua para celebrar uma tradição religiosa. E é com a conivência dos guardas prisionais que participam activamente nesta celebração.
As frases acima poderiam ser incluídas numa qualquer notícia sensacionalista. No entanto, são o mote para o filme “Jesus por um dia”, de Verónica Castro e Helena Inverno. E se pensam que nos referimos a ficção, desenganem-se. Esta é uma história real, passada em Vimioso, no distrito de Bragança, o que nos mostra que esta obra de arte faz parte do cinema documental.
Devido à necessidade logística da cidade de Vimioso em ter o número de pessoas requeridas para a reprodução da Via Sacra, uma tradição que muito diz àquela população, dois professores decidiram solicitar a ajuda dos reclusos do estabelecimento prisional de Bragança. Estranho? Para quem seja mais preconceituoso, talvez o filme ajude a desconstruir alguns estereótipos quanto a estas pessoas.
O filme retrata, por isso, alguns pormenores do tempo de preparação, quer da população, quer dos prisioneiros. Os ensaios, as resistências, os desabafos… Todos estes pormenores que expressam a “riqueza antropológica” referida por ambas as realizadoras, ou não fosse essa também uma das suas intenções.
A Rua de Baixo quis conhecer mais sobre este documentário, premiado como Melhor Longa Metragem Nacional do Indie Lisboa ’12, e deslocou-se ao Centro Cultural da Malaposta, em Odivelas, para assistir à sua apresentação e poder conversar com as criadoras.
Após o visionamento do filme, teve lugar uma interacção muito agradável entre o público e as realizadoras, onde foram trazidos à luz pormenores, dificuldades de percurso e opções criativas, bem como factores relacionais, íntimos até, e que permitiram conhecer um pouco do que se passou na produção de “Jesus por um dia”. Foi por esta altura, e mais tarde numa conversa mais pessoal, que a RDB tentou sorver toda a informação ali presente.
A intertextualidade possível com Manoel de Oliveira
Verónica Castro, antropóloga visual, e Helena Inverno, cineasta, referiram-se à forma como viveram todo este processo com intensidade e admitiram, inclusive, ter descoberto algo dentro de si e ter aprendido com os participantes a forma como a religião se vive. Questionadas sobre as similitudes que a sua produção tem com “O Acto da Primavera” (Manoel de Oliveira, 1962), referiram que este foi um dos filmes que fez parte da sua pesquisa, que é pioneiro no que toca ao cinema e à antropologia, o que tornou importante o seu visionamento, mas que a linguagem cinematográfica difere entre cada um e que a tradição se dilui no tempo que decorre entre ambas as produções, uma vez que a tradição oral de outrora dá, em “Jesus por um dia”, lugar a um gravador que repercute as deixas dos participantes.
O impacto social e espiritual e os momentos dramáticos
Verónica Castro abordou, ainda, o impacto social e espiritual como factor condicionante da expectativa. Após meses à espera da autorização para filmar num estabelecimento prisional, e ultrapassadas as principais barreiras burocráticas, surge a dificuldade do desconhecido. “Como documentar a história e os seus pontos dramáticos?”, pergunta a antropóloga mexicana.
O desconhecido acabou por brindar as realizadoras com a “sabotagem”, como chama Verónica, que alguns dos prisioneiros tentam executar, ora recusando-se, ora dificultando o processo, o que acabou por dar ao documentário um valor humano mais preenchido e momentos de raro humor…
Como o leitor deve calcular, filmar num espaço reduzido implica contingências técnicas e, no caso de um estabelecimento prisional, há também factores de privacidade envolvidos.
Daí que a RDB tenha questionado as realizadoras quanto à opção pelo plano fixo. Helena Inverno referiu que isso se deveu ao espaço e que, em conjunto com a produção, tinham decidido filmar com uma câmara pouco móvel, mas que permitia “um nível óptico de captação melhorado”.
As contingências da produção
Esta produção teve início, conforme foi referenciado, após a tomada de conhecimento da tradição que retrata aquando de um encontro cinematográfico em Trás-os-Montes. Daí que as realizadoras tenham ido ao encontro dos professores que deram origem ao projecto. Tendo recebido a autorização para filmar, tinham contudo de cumprir o protocolo de segurança; tinham poucos minutos para filmar em cada sessão e a soma desse tempo dá origem a doze horas de gravação, o que gerou algum desconforto na equipa. Apesar disso, o facto de serem três mulheres a marcar presença na prisão (“Já que vamos ser notadas, que sejamos bem notadas. E fomos três mulheres”, afirma Helena inverno) não foi impeditivo do cumprimento do desígnio. Afinal, os prisioneiros são pessoas que “pelo sofrimento são muito vulneráveis e já não têm nada a perder”.
Com o tempo, equipa de produção e prisioneiros foram-se habituando à presença mútua e ficando mais sensíveis a cada momento em comum, muito embora as palavras trocadas tenham sido quase nulas.
A sorte procura-se
De todo este processo, nascem então os três meses de montagem que resultam num filme documental de grande valor antropológico e humano. Pormenores de outro são-nos apresentados como obra do acaso, mas, como Ana Isabel Strindberg referiu durante a sessão de discussão que coordenou, “a sorte procura-se”. O olhar bem atento das realizadoras oferece-nos, então, um Cristo que se veste para a cerimónia no sacrário, o mesmo que mais tarde responderá a um menino o porquê de lhes chamarem presos.
“Somos presos, porque estamos mesmo numa cadeia.”

O mesmo Cristo que aconselha as crianças a portarem-se bem, numa imagem plena de ternura e ironia dada a sua condição em cumprimento de pena.
Com a resiliência dos professores que organizam esta intervenção social, a população está plenamente preparada para receber os prisioneiros e estes profundamente integrados nesta comemoração pascal. Verónica refere, por exemplo, que “o Cristo encarnou outra pessoa ou pelo menos outra confiança”, ao que Helena acrescenta que esse prisioneiro “cuja alcunha era Minhoca é agora o Cristo. De Minhoca passou a Cristo” pela forma como se apoderou ou foi apoderado pela personagem.
O restauro de Cristo
Ficam na retina imagens como a do criminoso que ladeia Cristo na cruz a retirar o relógio, a alternância entre as imagens de preparação da cerimónia e as imagens de restauro de uma estátua de Cristo, entre outras. O mesmo restauro revelou, mais tarde, que tal imagem era datada do século XVIII, deixando de lado a datação anterior que o reportava ao século XX.
Mais uma vez obra do acaso ou fruto da atenção e interesse pelo cruzamento das artes, estas imagens foram colhidas aquando do restauro de várias peças de Arte Sacra, levado a cabo pela equipa de restauradores da fábrica da paróquia de Grândola. Um Cristo jazia numa mesa de restauro; foi visto por Helena que lá se tinha deslocado para registar as imagens da desmontagem do altar. “Percebi que era importante para nós”, referiu, e na verdade o simbolismo que estas imagens transportam dá ao filme outra dimensão de significado, algo que vai para lá daquilo que é puramente documental mas que não deixa de ser um puro registo da realidade.
Duas realizadoras volantes e premiadas
Trabalhando a sua criatividade sob o nome de Volante, Helena Inverno e Verónica Castro, duas cineastas com formações distintas mas um poder de observação a considerar, têm todas as possibilidades e potencialidade de trazer algo de novo ao cinema português. Conforme afirmam, “somos duas pessoas volantes, que gostam de quebrar fronteiras”, mas nem por isso deixaram de ficar surpreendidas com o prémio que lhes foi atribuído no festival de cinema independente de Lisboa. “Sabíamos que tínhamos um conteúdo extraordinário, não há que ser modesta nisto, e sabíamos poder gerar interesse por sermos mais indeterminadas numa geração de uma corrente que apelido de neo-clássica”, disse Helena, mas ainda assim foram apanhadas pela surpresa.
Para o futuro, reservam-nos produções ligadas a artes performativas, como “Atlas”, performance que irá ser filmada em Portugal e na Finlândia e um projecto para Marselha, a capital da cultura europeia de 2013.
Fica o nosso agradecimento por trazerem até nós uma visão limpa de uma realidade pouco conhecida e por partilharem connosco o que se pode apelidar de bom, e nada enfadonho, cinema documental.
Fotografia: Andreia Filipa Cardoso
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