
A agressão de Will Smith
On 28/03/2022 by Fernando Miguel SantosA agressão de Will Smith a Chris Rock, na noite dos Oscars, ressuscita a eterna questão dos limites do humor. É verdade que não é fácil discernir onde se encontram as fronteiras da agressão verbal, mas o cerne da questão está na definição: verbal.
A liberdade de expressão e as restrições ao discurso
Tendo a concordar com o que ouvi de Ricardo Araújo Pereira, noutra ocasião, para quem o limite está no facto da liberdade de expressão defender o discurso. Ao minuto 33 de uma longa conversa sobre a liberdade de expressão e a tentativa de criar restrições ao discurso, RAP usa as suas filhas como exemplo:
“Costumam dizer-me: Se uma das tuas filhas for na rua e um gajo lhe disser “comia-te toda”, gostas? É claro que não gosto. A questão é: as minhas filhas não são frágeis. Elas sabem que se isso acontecer, quando isso acontecer, a culpa daquilo não é do que elas têm vestido, do corpo delas… A culpa de uma idiotice é sempre do idiota, primeiro ponto. Segundo, vou dar-lhes o mesmo conselho que daria se fossem filhos: não se responde a provocações de idiotas. Quando estás na selva e um gorila se levanta, não vais lá falar com ele, não se mexe com bestas. Quando estiveres a uma distância segura, se quiseres dizer, coisa que eu não recomendo “vai p’rá puta que te pariu, ó filha da puta do caralho”, podes.”
Ricardo Araújo Pereira
Diz ainda:
“Uma semana depois dos cartunistas do Charlie Hebdo terem sido abatidos a tiro, o Papa fez umas declarações dizendo “ eh pá, não, isto não, mas…” – e essa é a parte preocupante, uma vez que se trata do líder espiritual de um quarto da humanidade – “ mas, se este meu amigo disser uma coisa muito desagradável sobre a minha mãe, o que o espera é um soco”. É o próprio Papa que diz que é legítimo reagir a palavras com agressões físicas. Portanto, a pessoas como eu, que acham que a palavras se responde com palavras e que é impensável responder a um desenho com um tiro na nuca, causa-nos perplexidade. Quando foi lançada a fatwa sobre o Rushdie, o John le Carré e outros disseram “também está a pedi-las”. Não, não está. É o mesmo raciocínio das pessoas que dizem “foi violada? Claro, estava de mini-saia.””
Ricardo Araújo Pereira
Contra a violência nem sempre há coerência
Preocupa-me a coerência daqueles que defendem a agressão de Will Smith. Independentemente da piada ser ou não de mau gosto – e a palavra gosto remete para uma imensa subjectividade – a reacção não pode ser a violência.

Valter Hugo Mãe publicou o seguinte texto no seu Instagram, como legenda à foto da agressão:
“quando um imbecil julga que vive na idade média, onde os machos defendiam a honra de suas mulheres pela violência e não entendiam o que é comédia. quando um imbecil é tão imbecil que a única resposta que tem para dar é a violência. sim, a academia já não podia ter premiado alguém que ofereceu à gala o pior instante de sempre na história dos óscares. o que o mundo de março de 2022 mais precisa é exactamente o oposto disto. estamos há um mês a explicar aos imbecis que exigimos o oposto disto. #willsmithdoesntrock” (sic)
Valter Hugo Mãe
A coerência cai por terra quando se tenta convencer o Mundo de que a guerra e a violência não são resolução civilizada de conflitos e depois se aplaude um homem que agride outro. Will Smith podia ter-se ficado pela frase que gritou, podia ter-se levantado e pedido para falar, podia ter feito tudo o que se mantivesse proporcional à piada que sentiu como agressão.
Pode não ser bonito brincar com a doença de alguém, mas é comédia. Pode até ser considerado uma agressão, mas verbal. Então, que fosse respondida proporcionalmente. Imaginem o que seria dos espectáculos de stand up comedy se todos os ofendidos desatassem à estalada aos humoristas. Lá se ia a liberdade de expressão.
Façamos um exercício de empatia, colocando-nos na posição de cada um dos intervenientes.
Estamos numa festa, alguém faz uma piada sobre o nosso cônjuge que julgamos desagradável e nós levantamo-nos e passamos para a agressão física. Parece-me algo surreal. No meu caso, se tivesse agredido todos os que já me ofenderam ou agrediram verbalmente os meus, anos haveria em que teria uma sessão de boxe todos os dias.
Agora imaginemo-nos a trabalhar. Fazemos o nosso trabalho normalmente, como tantos outros o desempenharam antes, mas em dado momento alguém pensa que estamos a ir para lá do que é aceitável. Então, agride-nos.
A questão aqui não é o limite do nosso trabalho. Há trâmites, legais e morais, para se responder ao que se julga ser um excesso. A agressão física não é um deles. Não se cinge às palavras, não é apenas discurso.
Silogismos perigosos
Se aprofundarmos o assunto até ao seu âmago, deixamos a descoberto uma justificação do injustificável. Os utentes que invadiram a Urgência do Hospital de Famalicão estavam, seguramente, desagradados com o tratamento que tiveram. É um facto, caso contrário não teriam usado a violência. Teriam razão? Se tinham, deviam ter usado os mecanismos de queixa. Não tinham razão? Deviam ter esperado, como qualquer utente. De uma forma ou de outra, a gravidade está no que efectivamente fizeram: espancaram dois enfermeiros e um vigilante.
Podemos resumir estas atitudes com um silogismo:
Todos os que ultrapassam os meus limites merecem ser agredidos
Uma pessoa ultrapassou os meus limites
Logo, essa pessoa merece ser agredida
O problema é que os nossos limites, de todos nós, são enviesados. Porque são subjectivos, porque nos são próprios e porque não podemos vê-los de outro ponto de vista que não o nosso. Daí existir lei, um conjunto de regras que baliza parâmetros de convivência e de resolução de conflitos. Senão, voltaríamos a ser caçadores e colectores ou, pior, apenas animais.
Os silogismos baseiam-se numa premissa maior, uma premissa menor e a conclusão dedutiva. O supracitado é o que serve de justificação a todos os que defendem a agressão de Will Smith, mas parte duma premissa maior errada. Segundo a lógica a conclusão está correcta, mas não me parece que a moral que a sustenta seja defensável.
Senão:
Agressões no Hospital de Famalicão
Todos os que ultrapassam os meus limites merecem ser agredidos
Os enfermeiros e o vigilante de Famalicão ultrapassaram os meus limites
Logo, merecem ser agredidos
Justificação para a invasão da Ucrânia
Todos os que ultrapassam os meus limites (políticos) merecem ser agredidos
A Ucrânia ultrapassou os meus limites
Logo, a Ucrânia merece ser agredida

Atentado terrorista islâmico ao Charlie Hebdo
Todos os que ultrapassam os meus limites (religiosos) merecem ser agredidos
O Charlie Hebdo ultrapassou os meus limites
Logo, o Charlie Hebdo merece ser agredido

Atentado terrorista cristão ao Porta dos Fundos
Todos os que ultrapassam os meus limites (religiosos) merecem ser agredidos
O Porta dos Fundos ultrapassou os meus limites
Logo, o Porta dos Fundos merece ser agredido
Maturidade civilizacional
Dito isto, não perco a admiração pelo Will Smith enquanto actor. Estou ciente de que todos temos um ponto de não retorno, onde nos descontrolamos. Um de nós poderia, sem dúvida, descontrolar-se da mesma forma. Tudo isto não justifica a agressão, que merece ser repugnada em vez de defendida. Will Smith devia pedir desculpa e, querendo, poderia processar Chris Rock. Por seu lado, Chris Rock, querendo, devia apresentar queixa. É assim que os homens, os civilizados, resolvem os conflitos.
Aqueles que admiram imenso Will Smith tenderão a defendê-lo até ao limite racional dos argumentos. A maturidade não é isso. Maturidade é gostar podendo apontar o que está errado. Maturidade é amar os pais, os filhos, os amigos, sabendo que eles têm defeitos que não devem ser nem perpetuados nem defendidos.
Violência gera violência

Legitimar a agressão física de Will Smith a Chris Rock é validar o tipo de raciocínio que levou aos assassinatos dos cartunistas do Charlie Hebdo, à ordem de execução de Ayatollah Khomeini a Salman Rushdie por ter escrito o romance “Os Versículos Satânicos”, ao ataque terrorista cristão à sede do Porta dos Fundos, à retórica bélica de Putin. É ensinar a violência.
Chris Rock pode ter sido imbecil, mas a imbecilidade não mata ninguém. A violência sim. As notícias recentes deviam lembrar-nos disso: morrem homens na guerra, mulheres em casa e polícias em espaços de diversão. Em alguns destes casos, começa com um estalo.
1 comment
Arquivo
- Dezembro 2024
- Novembro 2024
- Agosto 2024
- Junho 2023
- Maio 2023
- Abril 2023
- Fevereiro 2023
- Janeiro 2023
- Dezembro 2022
- Novembro 2022
- Outubro 2022
- Setembro 2022
- Julho 2022
- Março 2022
- Fevereiro 2022
- Janeiro 2022
- Dezembro 2021
- Setembro 2021
- Fevereiro 2021
- Junho 2020
- Maio 2020
- Abril 2020
- Março 2020
- Fevereiro 2020
- Janeiro 2020
- Abril 2019
- Fevereiro 2019
- Janeiro 2019
- Dezembro 2018
- Novembro 2018
- Fevereiro 2017
- Agosto 2016
- Julho 2016
- Junho 2016
- Maio 2016
- Abril 2016
- Março 2016
- Fevereiro 2016
- Dezembro 2014
- Outubro 2014
- Abril 2014
- Fevereiro 2014
- Dezembro 2013
- Maio 2013
- Março 2013
- Fevereiro 2013
- Novembro 2012
- Setembro 2012
- Julho 2012
- Junho 2012
- Fevereiro 2008
Calendar
S | T | Q | Q | S | S | D |
---|---|---|---|---|---|---|
1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | |
7 | 8 | 9 | 10 | 11 | 12 | 13 |
14 | 15 | 16 | 17 | 18 | 19 | 20 |
21 | 22 | 23 | 24 | 25 | 26 | 27 |
28 | 29 | 30 |