Lições de Igualdade
On 27/10/2014 by Fernando Miguel SantosManifestavam-se contra o Estado Islâmico e alertavam para um genocídio. Os olhares iniciais que trocamos foram de surpresa, de alguma dúvida até, mas um momento desfez toda a distância
Todos os dias são bons para uma lição. Se for o nosso aniversário, estivermos em Paris e a lição se multiplicar, há um travo a epifania no sucedido.
Tudo começa em Trocadero. O corpo policial de intervenção vigiava calmamente os manifestantes curdos. O estigma da cor da cor da pele poderia dizer-nos que não éramos bem-vindos ali, mas as nossas câmaras tiveram mais força.
Manifestavam-se contra o Estado Islâmico e alertavam para um genocídio. Os olhares iniciais que trocámos foram de surpresa, de alguma dúvida até, mas um momento desfez toda a distância. Perante o disparo atento da câmara da Filipa, a manifestante gira o seu cartaz. Do outro lado, uma mensagem dirigida à comunidade internacional, preparada para ser fotografada e disseminada. Um homem que quase interrompia a linha de captura da imagem, pára e faz-nos um gesto de incentivo. Três jovens com bandeiras do Curdistão distribuem “flyers” de esclarecimento. Somos iguais. Isso sente-se. Kobane tem, sob a bênção da Torre Eiffel, uma maré de preocupações.
Ao jantar, conhecemos um menino diferente. Especial. Chamemos-lhe Artur.
“Perante o disparo atento da câmara da Filipa, a manifestante gira o seu cartaz. Do outro lado, uma mensagem dirigida à comunidade internacional, preparada para ser fotografada e disseminada. Um homem que quase interrompia a linha de captura da imagem, pára e faz-nos um gesto de incentivo. Três jovens com bandeiras do Curdistão distribuem flyers de esclarecimento. Somos iguais. Isso sente-se.”
Com algumas dificuldades de atenção e alterações do comportamento, o Artur aprende de forma diferente. Contudo, é o seu brilhantismo e a sua paixão em algumas tarefas que me marejam os olhos. À mesa, não há memória melhor do que a sua, não há melhor expressividade mímica, não há quem seja menos preconceituoso ou mais carinhoso. Há, apenas, uma forma diferente de ser, que amiúde ignoramos. Lamentável é sermos sempre um A antes de um B, uma nota antes de uma expressão, um número antes de um coração. Com o Artur não é assim.
Na manhã seguinte, perdemos o “shuttle” em Porte Maillot. Um taxista apregoa-se quase com atrevimento. Vê-se na tez morena que é imigrante.
Procuramos, em vão, uma solução para evitar os custos elevados. Por isso, a Filipa partilhou o banco de trás com duas romenas cuja voz mal ouvimos. Eu acompanhei o taxista, que prontamente questionou se tínhamos dinheiro vivo para evitar o pagamento com cartão, comum nos táxis franceses. Ao levantar dinheiro, pensei nas duas possibilidades: uma aventura de risco ou um tédio de morte. Nenhuma acabou por suceder. Durante toda a viagem, o homem revelou ser um dos conversadores mais lúcidos da minha vida. Sem qualquer tipo de constrangimento falou da sua origem berbere, da sua família, dos vários idiomas que dominava, do terrorismo, dos estigmas e da desculpa que estes são para interesses económicos, de política francesa e internacional, sempre num francês impecável e elaborado. Começou com uma pergunta interessada sobre a crise em Portugal e acabou com uma frase emblemática da nossa igualdade, apesar das diferentes origens: “a história está aqui, basta querermos vê-la e lê-la”.
Chegado ao Sá Carneiro, tenho mais de cinquenta pessoas à minha espera, numa surpresa preparada pela Filipa. Almoçámos todos juntos, volto a comover-me. À noite, adormeço pensando que todos somos curdos, berberes, iguais. O Artur que o diga.
Texto publicado no suplemento P3, do Público.
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