
Miramar, de Naguib Mahfouz, e a universalidade da Literatura
On 06/03/2022 by Fernando Miguel SantosNão conhecia Naguib Mahfouz até a minha futura sogra me oferecer Miramar. Há esta curiosidade sobre as ofertas literárias que me são feitas: as pessoas que estão mais virgens em relação ao conhecimento do mercado oferecem-me livros realmente surpreendentes, sendo menos influenciadas pelo marketing e consequentes escolhas mais massificadas.

Miramar é um romance bem construído que conta a história de seis exilados na Alexandria dos anos 60. Encontram-se hospedados na Pensão Miramar e revezam-se na narração dos acontecimentos, o que nos permite ter uma percepção profunda dos vários pontos de vista em relação aos mesmos acontecimentos.
Não é fácil acompanhar uma história com tantas referências da política egípcia dessa década. As notas de rodapé são, não só úteis, mas vitais para a compreensão que, de outro modo, exigiria pesquisa. Fui lendo o livro com alguns interregnos para outras leituras, porque esse seguimento da História é, a certa altura, menos divertido e mais esforçado.
Há, porém, algo inegável. O principal motivo deste artigo: o domínio da estética da palavra.
Naguib Mahfouz (1911-2006) foi o primeiro autor de língua árabe premiado com o Prémio Nobel da Literatura, que recebeu em 1988. Segundo a Academia Sueca, Mahfouz “através de obras ricas em nuances – agora clarividentemente realistas, agora evocativamente ambíguas – formou uma arte narrativa árabe que se aplica a toda a humanidade.”
A leitura pode, por força dos factos que lhe são adjacentes, ser esforçada, mas isso acontece também com outros livros de outros nomes elevados pela Literatura. Afinal, também isso é ler. Mas há dois momentos em que a leitura é realmente prazerosa: no início, quando ainda não estamos rodeados de acontecimentos políticos, e quando a estes nos habituamos, podendo deixá-los pousados nas letras e seguir a narrativa que é mais profunda, a que diz respeito às pessoas, às diferenças, às razões que a emoção parece desencadear. Aí, nesse momento de aceitação de que não temos referências para a compreensão instantânea, florescem o prazer da linguagem e a delicadeza do cuidado. As palavras chegam até nós sem excessos, limpas, como se nada sobrasse e nada faltasse.
Então, encontramo-nos com algo em que a arte, e a literatura em particular, são exímias: a universalidade.
“Contemplava o rosto pálido (…), onde lágrimas haviam deixado rastos ao longo das suas faces, os seus olhos tristes haviam perdido o seu brilho. Parecia-me estar a olhar para um espelho, ou, melhor dizendo, estar perante a própria vida no seu estado mais primordial, selvagem, implacável e terrífico; sim, ávida, despojada do seu fausto, a vida dura e coberta de espinhos, a vida com as suas vãs esperanças agrupadas numa concha de bainhas venenosas, a vida com o seu sempiterno segredo que atrai tanto os ambiciosos como os desesperados, oferecendo a cada qual o seu alimento. Foi aviltada e desprezada de forma indigna. Sim, estava a olhar-me a um espelho.”
Miramar, Naguib Mahfouz

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