A cultura tem origem, não tem bandeira
On 21/03/2022 by Fernando Miguel SantosVivo a cultura como premissa de Humanidade. Tenho dirigido alguns dos meus interesses para o que é exclusivo da nossa espécie, principalmente em situações – e não têm sido poucas – em que nos aproximamos da irracionalidade animal.
Escrevo e digo, amiúde, que são estas características exclusivamente humanas que temos de aconchegar. É um caminho que nos permitirá, embora talvez não o único, manter a humanidade, como forma de ser e não apenas como espécie distinta.
Ultimamente, repete-se que a verdade é a primeira vítima da guerra. Pouco depois, vem a cultura. Num conflito onde deflagram bombas, também se explode a memória. Uma memória que é de todos. Afinal, a cultura tem origem, não tem bandeira.
De algum tempo a esta parte, entramos paulatinamente num esforço de cancelamento do que é diferente. Por motivos politicamente correctos, quis-se eliminar músicas infantis e mudar contos de fada. Em vez de incentivarmos a contextualização, que guarda a História no seu lugar e dá espaço à evolução dos novos conceitos, parece-me que a preferência é cortar com o passado, ignorando-o ou fazendo dele um fardo. Não devia ser assim.
Guerra Rússia-Ucrânia: a destruição da cultura
Há duas vias de destruição da cultura: a efectiva, fazendo-a desaparecer, e o seu “cancelamento” – como agora é denominado – que impede a sua difusão.
Lamentavelmente, pouco se pode fazer sobre a primeira. Monumentos com significado histórico são bombardeados por dispositivos militares que não poupam vidas, o mais importante. Muito menos se inquietarão com a cultura que polverizam.
A segunda, é culpa dos decisores. Percebo, embora lamente, quando se sanciona o desporto. Putin usou o desporto como forma de propagar uma abertura do seu regime ao Mundo que não existia. Os atletas, embora seja lamentável que alguns, os que reprovam a guerra, sejam impedidos de competir, transportam uma bandeira além fronteiras, elevando a imagem do seu país. O desporto é uma forma de cultura, é certo, mas tem uma actualidade e um momento em que se concretiza. Alguns dos atletas russos estão ligados ao regime e, se assim é, devem ser sancionados da mesma forma.
Por outro lado, não consigo concordar com as sanções que têm sido impostas à cultura russa em vertentes que nada mudarão o rumo do conflito. Os limites deviam ser claros: só aqueles que apoiam a guerra de Putin merecem ser sancionados. Isto no que se refere aos vivos. Os artistas mortos, cujo legado tem origem russa, mas pertença universal, não deviam ser alvo de sanções.
O Washington Post compara esta política de “cancelamento” cultural com o McCarthismo, um movimento dos anos 50 que eliminou supostos simpatizantes comunistas da vida pública, manchando a liberdade de expressão de que a América tanto se orgulha.
A Universidade de Milão cancelou o curso livre sobre a obra de Dostoievsky. A questão não ficou por aqui. Gary Saul Morson escreveu no site FirstThings.com um esclarecedor artigo sobre a questão. Eis um excerto:
“Na Bélgica, um concerto de Stravinksy foi cancelado. No País de Gales, a Filarmónica de Cardiff removeu Tchaikovsky do programa. Na Holanda, a Filarmónica Harlaam, dizendo que “seria inapropriado celebrar a música russa”, cancelou um mini festival com Tchaikovsky e Stravinsky.
“Eles têm medo de ameaças. Mas não se deve sucumbir a isso”, observou o perito russo Michel Krielaars. “Estas parecem-se com as práticas soviéticas”. Estamos a tornar-nos mais parecidos com a Rússia todos os dias?
“Vocês têm a Rússia de Putin e a Rússia de Pushkin”, observou Krielaars. Culpar toda uma cultura, passada e presente, por uma acção política actual implica que tudo sobre essa cultura contribuiu para essa acção. Se a Alemanha sucumbiu aos nazis, não se ouve Beethoven; por causa de Mussolini, cancele-se Dante e Raffaello; se rejeitar acções americanas no Vietname, no Médio Oriente, ou em qualquer outro lugar, nada de Thoreau ou Emily Dickinson. Poderá haver melhor forma de encorajar o ódio nacional do que tratar toda uma cultura e a sua história como um todo unificado, portador, como se fosse geneticamente, de uma qualidade hedionda?”
Gary Saul Morson, in FirstThings.com
Como escreveu Mia Couto, “a literatura pode ajudar a construir vizinhanças”. Estas não se medem apenas na geografia. São fenómenos de proximidade que a cultura estreita, encabeçada pela literatura pela dedicação de tempo que nos exige.
Um dos primeiros trabalhos escolares de que tenho memória foi sobre Tchaikovsky. Antes da guerra começar, dois novos projectos me povoavam o mundo das ideias. O primeiro, que se desenha há vários anos, foi baptizado conceptualmente com inspiração nas bonecas russas, as matryoshkas. O outro, mais recente e mais ambicioso, é um projecto de escrita que inclui Dostoievsky. Não tenciono abandoná-los. Não é a Rússia, enquanto país, história e cultura, que devemos evitar. São os déspotas, os tiranos, os ditadores e as personagens subsersivas do círculo político.
No Expresso, Henrique Raposo apoia esta ideia. Acredito, também, que aquilo que devemos fazer é consumir, e não “cancelar”, a cultura russa. Ler Tchekov, Tolstoi e Dostoievsky. Ouvir Tchaikovsky. Só assim podemos evitar que o ódio nos polua.
Comecei a leitura do livro de José Milhazes, A Mais Breve História da Rússia – Dos Eslavos a Putin, com essa intenção: a de conhecer melhor um país que não se resume ao seu ditador, como nunca se resumiu aos czares, aos bolcheviques ou aos gulags. As guerras não existem porque somos diferentes; existem porque existem pessoas que querem obliterar essa realidade. A cultura é um dos melhores caminhos para o entendimento das nossas diferenças. É promotora da compreensão e da aceitação e até celebra, com a mesma intensidade, o que nos une e o que nos distingue.
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