Enfrentar a morte
On 17/04/2020 by Fernando Miguel SantosQuando se trabalha nos Cuidados Intensivos, a morte é uma presença constante. Felizmente, a maioria das vezes conseguimos escapar-lhe, salvando os nossos doentes de um fim trágico. Noutros casos, é ela que leva a melhor.
Todos desejamos que a morte seja limpa, sossegada, acompanhada. É assim que gostamos de a imaginar para nós e para os nossos. Embora tentemos fugir dela e enganá-la sabemos que mais cedo ou mais tarde teremos de a aceitar. Desejamos apenas não sofrer.
Nos Cuidados Intensivos nem sempre é assim. Tudo fazemos para minimizar o sofrimento, a azáfama, os alarmese, a agitação e a dor quando alguém se aproxima do fim. Estamos preparados para todos os actos técnicos e científicos, mas ninguém está preparado para acompanhar os últimos minutos de vida de uma pessoa.
Não é apenas em tempo de pandemia que isto acontece, mas é nestes períodos que estas situações se tornam mais regulares. Como se o próprio corpo nos ignorasse, agimos quase em modo automático. Salvamos alguns é certo. Mas com o mesmo automatismo, há corpos que nos abandonam lentamente, apesar da nossa destreza. Já não há medicação de urgência que faça efeito, já não há forma de segurar aquela vida que nos escorre por entre os dedos.
Nessa altura, uns ficam em silêncio. Outros deixam as lágrimas correr até à máscara. Outros afastam-se ligeiramente. Cada um faz o luto da sua forma com toda a legitimidade.
Eu falo. Com lágrimas ou sem lágrimas, falo. Digo àquela pessoa que estou ali, que não vamos deixá-la sozinha, que pode descansar sem se preocupar com mais nada. Há medicação para aliviar os últimos momentos de dor, mas acredito que a força da palavra e do nosso toque é ímpar. Dou a mão, sossego, afago…
Ninguém sabe ao certo o que se sente nestes momentos, mas, na dúvida, faço como se fosse para mim. Foi assim que aprendi com um dos enfermeiros que mais tempo me formou: “quando tiveres dúvidas, faz como se fosse para ti.”
No fundo, também é para mim.
Quando o meu avô morreu quis dar-lhe banho e prestar os cuidados post-mortem. As funerárias fazem-no com zelo, mas eu preferi assim. Lavei-o com uma mistura de água e lágrimas que me caíam. Fiz o mesmo ao meu tio.
Estas pessoas que agora partem, como todas aquelas que antes partiram, são também avós, pais, tios, irmãos. Por causa desta pandemia, não podem ter os familiares ao seu lado na hora da despedida. Nessa altura, os enfermeiros assumem o papel de últimos guarda-costas. Para que ninguém esteja sozinho, deixamos que essa cicatriz fique gravada em nós.
Ninguém fica sozinho. Ninguém larga a mão de ninguém.
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